quarta-feira, 28 de julho de 2010

A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro,as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?

À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca

A boca que eu sonhei beijar.

De quem é a boca?

Da Outra.

O remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço quie enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei..
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.

Beijo, e em quem penso?

Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai e não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,

Ah, meu amor, e o que ele esconde!

Que é do sorriso

Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem

Que amei com ansiedade terna

Por ser parecida

Com a Outra.

Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
E façamos desta hora um resumo

Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única
Sê a Outra.

Fernando Pessoa

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